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Ditadura divide torcida de presos políticos na Copa de 70

labjornalismo7h

Por Vini Portella

A delegação brasileira presente na Copa de 70 posa ao lado do ex-presidente Emílio Médici. / Foto: Rio de Janeiro, 1970. Correio da Manhã. Acervo do Arquivo Nacional.


A seleção brasileira de 1970 contagiou o mundo. Em uma cela do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), o sentimento de quem se revoltou contra a ditadura militar não era diferente. Numa pequena televisão, presos políticos se misturaram com alguns policiais contraventores para assistir a estreia da Canarinho na primeira Copa televisionada no Brasil. A discussão sobre as consequências da possível conquista do Tri tinha ganhado força. Uma parte dos militantes entendia que torcer contra o escrete era a melhor postura diante do contexto da época, já que a ditadura utilizaria o título para exaltar o regime. Cid Benjamin, preso por participar do sequestro do embaixador americano, não acreditava que a tática faria alguma diferença. A Tchecoslováquia, comunista, abriu o placar no Estádio Jalisco, em Guadalajara. Mas a virada veio, e a emoção falou mais alto. 4 a 1 Brasil, e festa no xadrez.


- Tava claro que os militares queriam identificar a seleção com a ditadura e a ideia de um país forte com os militares. E que eles iam utilizar isso politicamente se o Brasil fosse campeão. Mas as opiniões sobre torcer ou não se dividiam. No geral quem gostava de futebol torcia, e quem não acompanhava vinha com essa racionalização. Mas o fato é que ninguém tinha o que fazer na prisão, e mesmo quem não gostava foi ver o jogo na cela grande, que a gente chamava de Maracanã. No final, o desempenho da seleção acabava contagiando – contou Cid.


Guerrilheiro urbano, ele era membro do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), que orquestrou e executou o sequestro de Charles Elbrick, então embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Apaixonado por futebol, a prisão em abril de 1970 quase impediu que o militante assistisse o momento mais glorioso de um dos melhores times da história do esporte bretão. Enquanto os militares interrompiam as sessões de tortura para assistir à seleção, Cid era mantido na solitária e não podia ter acesso às transmissões.


Ele só voltou a ver Pelé e companhia na final, após ser exilado na Argélia, por conta do sequestro do embaixador alemão, que resultou na soltura de 40 presos políticos em troca da libertação do germânico. Pé quente, Cid presenciou mais um 4 a 1, dessa vez em cima da Itália, na grande final. Antes do jogo, alguns companheiros de exílio acreditavam que a conquista do título fortaleceria a ditadura e, por isso, defendiam a torcida contra o Brasil. Mas, novamente, o êxtase tomou conta do coração dos brasileiros, e ninguém no exílio segurou o grito de campeão.


No entanto, o clima foi diferente no antigo Instituto Penal Cândido Mendes (IPCM), mais conhecido como Presídio da Ilha Grande. Assim como Fernando Gabeira, que também participou do sequestro de Charles Elbrick, o advogado e então membro da organização armada PCBR, José Carlos Tórtima, estava preso no local. Ele conseguiu assistir os primeiros jogos da seleção na Copa em meio ao cárcere, mas o sequestro do embaixador alemão resultou em uma série de medidas restritivas. Dentre elas, o fim da transmissão dos jogos para os presos.


Independente da possibilidade de ver o escrete em ação, José Carlos não se entusiasmou com o título do Brasil. O uso político do futebol pela ditadura militar incomodava o militante, assim como outros de seus companheiros. Refletida em uma massiva campanha publicitária e na recomendação da ARENA para que os candidatos do partido se aproveitassem do sucesso brasileiro no México, nas campanhas eleitorais de 1970, a exploração da imagem da seleção era vista como um perigo.


- Eles canalizaram a vitória dos atletas em uma vitória da ditadura. E o pessoal mais consciente, não só de esquerda, achou isso uma coisa muito ruim. As pessoas torciam pela nossa seleção, mas como isso era capitalizado e manipulado pela ditadura, a gente achou que seria melhor para o país não ficar botando areia nos olhos do povo com um título da Copa. A avaliação que nós fizemos é que uma euforia com a vitória poderia desviar a atenção da população, era esse o objetivo deles – analisou José Carlos.


O ópio e o povo


Na onda do Tri, o governo Médici aproveitou a construção de obras relevantes, o crescimento do PIB e a aceleração da industrialização (processos que marcaram o controverso “milagre econômico”) para construir a imagem de um Brasil próspero no início dos anos 70. Ao mesmo tempo, a repressão era intensa; as prisões, torturas e assassinatos constantes; e a censura uma realidade quase inevitável.


Alceste Pinheiro, jornalista e professor aposentado e, na época, militante no movimento estudantil, foi atingido no olho por um cassetete de um policial em uma manifestação no Rio de Janeiro. A pancada resultou em um deslocamento da retina e na perda de visão de um dos globos oculares. O ocorrido não impediu que ele assistisse a seleção e deixasse de lado a frustração de 66, quando o Brasil foi eliminado pela primeira e única vez na fase de grupos, após a lesão de Pelé. Apesar do uso político da conquista do Tri pela ditadura, Alceste sempre acreditou que a alegria e o orgulho nacional poderiam servir de combustível para os dois lados.


- Eu via pela TV e, quando saía gol, eu e meus colegas íamos pra rua. Eu sempre consegui separar as coisas. A ditadura foi terrível, mas eu acho que teria sido pior se nós não tivéssemos ganhado a Copa. Primeiro porque as pessoas se juntavam, e logo depois no mesmo ano, pelo incrível que pareça, a oposição elegeu muitos (23) deputados do MDB. É como João Saldanha dizia: a Itália ganhou a Copa de 34 e 38, e isso não impediu que Mussolini fosse pra forca. Eu não conheci ninguém que torceu contra e acho que a luta é mais ampla, não se faz aí.


A utilização escancarada da Copa de 70 para construir uma falsa imagem a respeito do regime militar no país é mais um exemplo de uma prática antiga, que atravessa o tempo e o espaço. Das Olimpíadas da Grécia Antiga ao Brasil de 1958, com JK no poder, governantes de diferentes ideologias se aproveitaram de conquistas esportivas para aumentar o prestígio diante da população e maquiar os problemas na gestão do Estado. A importância do futebol como produto cultural e elemento fundamental do que se entende como brasilidade só reforça esse caráter, como observa o jornalista esportivo PC Vasconcellos.


- É obvio que sabendo que o futebol mexia com a população independente de classes sociais, um governo militar, seja ele brasileiro ou não, vai querer sempre se apropriar desse tipo de bem. Você tem imagens da seleção brasileira sendo recebida pelo Presidente da República em 70, como o FHC recebeu a seleção em 2002 e o Vampeta rolou a rampa. Essa apropriação é de governos, mas claro que quando é uma ditadura isso provoca mais debate. Mas todo governo, seja ele democrático ou autoritário, se apropria de determinados ganhos, porque ele quer faturar em cima daquilo.


A foto de Médici com o elenco tricampeão, encontrada na exposição do Arquivo Nacional "Drama e Euforia: o Brasil nas Copas de 50 a 70", é uma das muitas imagens que ilustram a exploração da conquista do Tri pelo regime militar. Hoje ameaçado pela falta de investimento e incentivo às instituições que valorizam a cultura e a história nacional, o Arquivo Nacional traz à tona um momento marcado pela contradição. A lembrança do sofrimento causado pela ditadura vai de encontro ao sorriso dos milhões que se apaixonaram pela mágica seleção brasileira de 70.


A política percorre cada aspecto da vida. Enxergá-la e entender o seu lugar é relativo, depende de cada um. A beleza está nos olhos de quem vê. PC assistiu sua primeira Copa em 1970, aos 13 anos. A criação em um ambiente crítico ao regime não permitiu que a pouca idade o deixasse alheio ao seu entorno. Já fissurado em futebol, o garoto não abria mão de assistir Pelé, Gérson, Jairzinho, Tostão e Rivelino. Hoje, mais de cinco décadas depois, ele ainda carrega consigo a singela memória do dia 21 de junho.


- No dia da final contra a Itália eu lembro da minha mãe e do meu pai dizendo que o almoço tinha que sair mais cedo, porque o jogo passava ao meio dia no Brasil. E eu me lembro exatamente daquele momento. O cardápio foi arroz de galinha e, de sobremesa, um manjar, que era um pudim de coco. E depois, a melhor parte: vitória.

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