Por João Pedro Fragoso.
Com o fim de um carnaval cheio de referências à cultura negra, especialmente de religiões de matrizes africanas, um debate comum nas redes sociais voltou à tona: afinal, de onde vem o samba que conhecemos hoje, do Rio de Janeiro ou da Bahia? No entanto, de acordo com Rachel Valença, pesquisadora, professora e escritora que integra o júri do prêmio Estandarte de Ouro há oito anos, as discussões na internet sobre origem pouco importam, mas sim, as transformações que o samba passou desde a sua chegada no país.
— O samba não existe somente na Bahia e no Rio de Janeiro: num país da dimensão do Brasil, musicólogos sempre localizaram a presença de samba em várias regiões, com suas características próprias. O samba que aqui chegou na virada do século 19 para o 20, vindo da Bahia, tinha características bem diferentes do samba urbano carioca, como nós o conhecemos hoje — falou Valença, antes de completar:
— Mesmo já aqui no Rio o samba se transformou: o samba que se fazia na região da Pequena África era diferente do samba do Estácio, de Ismael Silva, o “samba de sambar”, como ele o definiu: aquele feito para que um grupo (a escola de samba, que nascia) se deslocasse em procissão. E desde então muitas outras transformações esse samba carioca vem sofrendo, o que, na verdade, garante sua sobrevivência, porque aquilo que não se renova tende a desaparecer.
Por outro lado, Valença, ex vice-presidente da Império Serrano e, aos 77 anos, integrante da Galeria da Velha Guarda da escola que foi a campeã da Série Ouro do Carnaval 2022, elogia o rumo adotado pelas agremiações nos desfiles deste ano. Num histórico recente, diversos enredos que homenageavam figuras que nada tinham a ver com o carnaval e a cultura negra foram vistos na avenida.
— Vejo de forma muito positiva o fato de as escolas de samba terem conquistado, finalmente, o direito de retratar em seus desfiles a sua própria cultura. Durante décadas, cantaram em seus enredos heróis da história oficial, elementos da cultua branca hegemônica. Hoje podem expressar os valores de sua cultura, de sua religião, e o fazem de uma maneira forte e potente — declarou.
Embora seja mundialmente conhecido pela influência carioca, o samba é oriundo do território baiano. Com a invasão do Brasil feita pelos portugueses e o tráfico de escravizados com os navios negreiros, era em Salvador, na época a capital da república, foram lá os primeiros batuques que deram origem ao gênero que conhecemos hoje em dia. Depois, como afirmou Rachel Valença, o samba sofreu diversas adaptações e transformações.
Dessa forma, fica evidente a importância órgãos como o Arquivo Nacional, que trabalham para manter a memória e a cultura de povos que sofrem com o apagamento intencional de uma sociedade racista e elitista que busca manter o status quo que a beneficia.
— O Arquivo Nacional é a mais importante instituição de memória do país e sendo o samba uma manifestação cultural muito presente no Rio de Janeiro, cidade que foi capital por quase 300 anos, farta documentação referente a ele pode ser encontrada no acervo do NA. (Mas) não devemos perder de vista que o samba foi alvo de preconceito durante muito tempo, e ouso afirmar que isso não mudou muito. Nascido da classe pobre, na sua maioria negra, levou muito tempo para que viesse a ser reconhecido como cultura. Uma sociedade guarda, “arquiva”, aquilo que julga importante. O samba não era considerado importante. Por isso, grande parte de sua memória se perdeu. Para que no futuro não se possa dizer o mesmo, seria importante que houvesse no AN uma política de captação dessa memória, bastante vulnerável por ser informal — afirmou a pesquisadora.
Para se ter ideia, em relação ao carnaval, o Arquivo Nacional tem, sob sua guarda, um rico acervo de fotos, vídeos (disponível em https://br.pinterest.com/arquivonacional/carnaval/), fantasias e letras de samba-enredo históricos que permitem entender a origem da maior festa popular do país.
Além disso, recentemente, o AN também produziu a exposição virtual “O Samba faz a história”, que apresentou ao público do acervo cerca de oitenta documentos, entre fotografias, partituras, rótulos de discos e outros tipos variados de produção, que mostram um pouco dos momentos marcantes do gênero, desde a chegada no Brasil, com os batuques africanos na Bahia, passando pelas ruas do centro do Rio até chegar na atualidade.
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