Por Giulia Matos.
Alguns participantes da Semana de Arte Moderna em foto retirada no Hotel Terminus, em 1924. / Foto: Arquivo Nacional
Em 1972, no auge do regime militar, um documento confidencial com o selo do Exército autorizava a realização de um evento comemorativo dos 50 anos da Semana de 22. Na ocasião, as autoridades destacaram, dentro de uma visão ufanista, a relação entre o movimento e a valorização da cultura nacional. Para a professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage Fernanda Cardoso Lopes, doutora do Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da UFRJ, o documento reafirma a ideia de que a história é "construção, arquivamento e apagamento", e a Semana de 22 permite visões diversas com o passar dos tempos.
- A história é construção, arquivamento e apagamento. É através dos documentos e fotos que temos da Semana de Arte Moderna que produzimos esta conotação histórica, todo este impacto que ela possui. Toda esta releitura que acontece, não só sobre a mostra, mas até sobre a chegada dos portugueses no país, é super bem-vinda.
A ex-curadora assistente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro reitera que, embora a Semana de 22 tenha impactado a arte nacional ao romper com as tradições e provocar alteração no cenário conservador da época, o movimento era composto, na maioria, por integrantes da elite branca. Desse modo, o encontro não representaria todo o país e a pluralidade do povo.
- Pensar nos cem anos da mostra ajuda as pessoas a refletirem sobre o que foi silenciado naquele momento. A maioria dos participantes eram homens da elite branca, e a ideologia presente nesta cerimônia partiu deste grupo seleto. Entender o contexto do período nos faz identificar e preencher lacunas em relação à diversidade que não foram trabalhadas. Assim, podemos sair da leitura oficial, da imagem perfeccionista atribuída ao sarau e possibilitar a chegada de outros pontos de vista, focados no apagamento de uma parte da história.
Entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922, artistas plásticos e escritores como Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti entre outros, se reuniram no Theatro Municipal de São Paulo. O intuito da reunião, que fora anunciada por toda a cidade previamente, era divulgar e apresentar a arte com influência europeia. A cerimônia ganhou notoriedade por romper com os modelos conservadores e realistas empregados e defendidos pelas elites oligárquicas da época. Este episódio é considerado o pioneirismo do modernismo no país e ficou conhecido como um marco para a cultura brasileira.
Fernanda aponta Oswald de Andrade como uma das principais figuras da Mostra, principalmente quanto à questão da valorização e da criação de uma identidade nacional. Nos anos de 1924 e 1928, inspirado pelo tema, o autor escreveu o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico.
- Oswald de Andrade é como um ícone desta causa, da exposição. Nos manifestos que escreveu e publicou nos seguintes à mostra, ele explicita a necessidade de autonomia da arte e cultura brasileira, mesmo com a influência das vanguardas europeias. A segunda obra fala justamente sobre utilizar este conhecimento externo de modo a absorver o que consideravam como interessante e transpor para o cenário nacional. A liberdade era mantida ao mesmo tempo em que havia a dinâmica de diálogo e troca com o exterior.
Esta irreverência não surgiu do nada. Durante o centenário da Independência do país, a Primeira República enfrentava a rejeição do povo e passava por um momento de declínio. O mundo do trabalho começava a se organizar e é criado o Partido Comunista. Um pequeno grupo de militares marchava na praia de Copacabana contra o governo, caso que foi apelidado de “18 do forte”, e que marca o princípio do tenentismo.
Intelectuais católicos fundavam o Centro Dom Vital e a revista “Ordem”, o que demonstrava o descontentamento da Igreja com a República, pois, ao contrário da Monarquia, o governo era laico e afastava a instituição do poder. Eles se articulavam e pronunciavam na esfera pública. Neste mesmo ano, a zoóloga Bertha Lutz, ganhava notoriedade no mundo da Ciência, e incentivou a luta pelos direitos das mulheres.
Os desejos dos brasileiros por uma conjuntura social, cultural, política e econômica diferentes eram enfatizados com estes atos, de acordo com a doutora em História pela Universidad Complutense de Madrid, e professora da PUC-Rio, Margarida Neves. Ela afirma que isto culminou no anseio pela formação de uma identidade nacional, que se afaste da idealização e da visão estrangeira, aplicados na Semana de Arte Moderna.
- São educadores, intelectuais, trabalhadores, artistas, homens e mulheres que procuram se manifestar e mudar o país. A exposição está inserida neste movimento, pois simboliza o desejo da composição da imagem do país e do povo, a valorização do nacional. As pessoas não queriam mais replicar os padrões europeus e sim apreciar as peculiaridades do Brasil, trazer à tona temáticas populares, como lendas, o carnaval, o subúrbio, entre outros.
A pesquisadora em História Social da Cultura, ao refletir sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, enfatiza que as manifestações artísticas do passado contribuem para as reivindicações culturais que ocorrem atualmente, como a valorização da ancestralidade africana na música, no carnaval e de outras minorias.
- Nós criamos este mito ao redor da Semana de Arte Moderna, mas acho que o espírito de mudança pode ser visto em demonstrações atuais culturais inovadoras e ricas. Elas carregam preocupações históricas que são análogas a esta Mostra. Atualmente, há a reivindicação da ancestralidade africana na cultura nacional. Nos desfiles do carnaval deste ano, notamos totalmente o uso das simbologias oriundas destas tradições afro-brasileiras.
Margarida cita o cantor e compositor Emicida, e o projeto lançado “AmarElo”, lançado no ano de 2020, como exemplo de manifestações artísticas que possam ter o mesmo impacto que a Mostra teve no futuro, que rompem com um padrão. A obra cinematográfica musical teve como objetivo resgatar a trajetória do povo negro no país. A professora destaca que a apresentação, que ocorre no longa-metragem e traz essa bagagem social, foi realizada no Theatro Municipal de São Paulo, mesmo local da exposição paulistana.
- Acho o Emicida um intelectual orgânico que representa um grande grupo da sociedade. O AmarElo foi filmado no mesmo lugar da Semana de Arte Moderna! Isto é muito interessante. E ele tinha como proposta levar a população pobre, prioritariamente negra, excluída, as mulheres, a comunidade trans, àquele espaço em que eles nunca haviam entrado. Assim como a exibição, o projeto foi pensado com o intuito de transmitir alguma ideia.
Autorização para a realização da mostra em comemoração aos 50 anos da exposição. / Foto: Arquivo Nacional
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